Quem Escreveu o Livro de Apocalipse?
16. Alguns leitores talvez considerem supérflua a pergunta sobre quem era o João mencionado como remetente em Ap 1.1,4,9 e 22.8. Até o presente eles não tiveram nenhuma dúvida de que se trata do apóstolo João, o “velho”, um dos Doze, o filho de Zebedeu. Também a presente interpretação defende que em Ap 1.1 é indicada a autoria por João, o filho de Zebedeu. Não obstante, essa posição permanece no nível da suposição. O simples fato de que o testemunho próprio do livro cita o nome sem qualquer especificação mais clara dá espaço para a indagação qual é o João que está por trás desse nome amplamente recorrente.
17. Há sobretudo duas constatações que causam dificuldades. Apesar de que, pelo vocabulário e estilo, o Apocalipse pertence inequivocamente ao campo dos demais escritos joaninos, ao mesmo tempo diferenças evidentes causam dúvidas sobre uma autoria da mesma pessoa. Isso vale em segundo lugar também para o universo intelectual. Apesar da freqüência com que o comentário pode apontar para paralelos úteis entre o evangelho de João e as cartas dele por um lado, e o Apocalipse por outro, não há como negar diferenças de conceitos e linguagem.22
18. Por que deveríamos, apesar disso, continuar defendendo a autoria do filho de Zebedeu?
A meu ver, a favor dessa tese há o fato de que após sua redação o Apocalipse rapidamente alcançou grande disseminação. Quando damos ouvidos aos testemunhos freqüentes e positivos da Ásia Menor, Gália, África, Egito, Itália e Síria, parece que no início do século ii os cristãos não leram nenhum outro livro do Novo Testamento com tanto afinco como este. Todas as listas canônicas mais antigas do século ii arrolam este livro.23
Além deste fato, considere-se o segundo aspecto: desde o começo a obra foi lida com a maior naturalidade como obra do filho de Zebedeu.24 Como, afinal, o livro de um João desconhecido qualquer teria alcançado tamanho eco? Como um equívoco da questão da autoria poderia ter-se espalhado com tanta rapidez na província da Ásia? Milhares de fiéis sabiam da deportação do “velho” do seu meio para a ilha de Patmos (a idade avançada de João em Éfeso está comprovada com segurança25). Ou ignoravam totalmente este acontecimento, e neste caso ninguém seria capaz de simulá-lo falsamente diante deles. Por volta do ano 170 surge um pequeno grupo eclesiástico, os chamados “álogos”, que combatem a autoria tradicional por razões dogmáticas. O conteúdo do Apocalipse não se enquadra em sua fé de conotação filosófica. Para retirar a base da autoridade do livro, bem como de seus adversários, que se apoiavam no Apocalipse, eles afirmam que o autor seria (justamente!) Querinto, o adversário de João em Éfeso. No século seguinte, Dionísio de Alexandria (em torno do ano 250), sucessor intelectual desse grupo, mas ao mesmo tempo portador de novos argumentos de crítica literária, defende a opinião de que talvez tenha vivido em Éfeso ainda um segundo João, o qual poderia ser cogitado como autor. Outros cem anos mais tarde, em torno de 340, Eusébio transforma a suposição em certeza: sim, havia em Éfeso ainda outro “presbítero” João, que é o autor do Apocalipse.26
Todos estes homens não esconderam seu desconforto com o conteúdo do livro, mas encontravam-se num aperto diante da autoria apostólica. Não podiam atacar o apóstolo. Em decorrência, criaram para si um segundo João, ao qual atribuíram, então, a obra. Com isso, o livro estava liberado para ataques! Pouco tempo depois, já por volta do ano 150, quase toda a igreja do Oriente afastou-se do Apocalipse e de toda a literatura apocalíptica restante de origem judaica e cristã. Somente no século vii a resistência cedeu.
19. Também na igreja do Ocidente, que inicialmente não esposou a reserva tão precoce da igreja do Oriente, em breve teve-se pouca compreensão para com essa mensagem. Promovida a religião estatal e com esplêndidas relações com o Imperador, a igreja oficial tinha os pés firmes neste mundo. De que servia, pois, um livro que exclama catorze ais sobre este mundo e culmina na súplica: “Vem, Senhor Jesus”? Apesar disso, o livro não foi simplesmente deixado de lado, mas lhe foi dada uma nova interpretação (cf. qi 56).
Deveríamos deixar como estão as dificuldades acima aludidas (qi 17), que decididamente devem ser levadas a sério no que diz respeito à autoria de João, filho de Zebedeu. A tradição antiga fala com voz alta demais para que pudesse ser ignorada, e é tão digna de crédito que não a deveríamos descartar facilmente.27
20. Quando se aceita como autor o discípulo do Senhor, talvez também pudesse se dar ouvidos à seguinte tradição. Tertuliano informa, por volta de 200, que o imperador Domiciano mandara trazer para Roma, no começo da época da perseguição, não somente aqueles dois parentes de Jesus (cf. qi 7), mas também a última testemunha ocular do tempo de vida de Jesus, João, o “velho”, que liderava as igrejas da província da Ásia a partir de Éfeso. Em Roma, o imperador teria mandado inquirir e torturar o apóstolo (a tradição fala de mergulhar em óleo fervente) e depois banir para Patmos. Se essa notícia for correta,28 haveria uma amarga experiência pessoal de Roma por trás da descrição do Apocalipse acerca da cidade das sete colinas com seu luxo insano e sua obsessão tentadora, com vaidade e vícios, com terror e derramamento de sangue, e com toda a sua maturidade para o juízo (Ap 17).
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Notas
22 Termos axiais do quarto evangelho como “luz”, “trevas”, “fé”, “amor”, “verdade”, “graça”, “paz” faltam no Apocalipse ou desempenham um papel apenas subordinado, sendo em geral também carregados com conteúdos um pouco diferentes. Ocasionalmente o comentário indicará tais diferenças.
23 Bousset e Zahn citam pormenorizadamente as provas.
24 O testemunho mais antigo encontra-se em Justino mártir, Diálogo com Trifão 81.4, anterior ao ano 160.
25 Somente depois do ano 400 surge a afirmação de que, segundo Papias, os dois filhos de Zebedeu, ou seja, João e Tiago, teriam sofrido o martírio na Palestina. Quando à incredibilidade disso, cf. Delling, em: Religion in Geschichte e Gegenwart, 3ª ed. Tübingen 1959, vol. iii, col. 803-804.
26 Comprovação de fontes e discussão delas em Feine-Behm, Einleitung in das NT, 14ª ed. Stuttgart 1965.
qi questões introdutórias
27 O. A. Piper, em RGG3 vol. iii, col. 829 opina que “é difícil de entender o surgimento de uma tradição tão ‘falsa’”, e que a “afirmação de que os dois livros são incomparáveis” é “fortemente exagerada”. Entre os mais recentes também Michaelis, Hadorn e Stauffer mantêm a convicção de que a autoria é do apóstolo João. Outros deixam a questão em aberto.