Interpretação do Livro de Apocalipse

Interpretação do Livro de Apocalipse

Interpretação do Livro de Apocalipse
Depois de redigido, o Apocalipse deveria alcançar imediatamente os cultos das igrejas na província da Ásia. Além delas, seu lugar é em todos os púlpitos e todas as cátedras cristãs (cf. o exposto sobre Ap 1.3,4). A instrução em Ap 22.10 mais uma vez afirma expressamente: este livro visa ser explicado – para todos. Como essa ordem foi cumprida?
O quadro é muito contraditório. Como mencionamos na qi 18, há indícios referentes ao século ii de uma extraordinária divulgação e popularidade do Apocalipse. No decorrer da história da igreja repetidamente gigantescos impulsos partiram dele. Arte e poesia encontraram neste livro um tema inesgotável.56 Grandes organismos e movimentos cristãos foram cunhados por este livro amado com paixão. Johann Albrecht Bengel (1687-1752) transformou-o no livro principal dos devotos da metade seguinte do século e em tema constante no Pietismo até hoje. Sim, provavelmente o livro foi lido e interpretado mais que todos os demais escritos do nt.
Contudo, cumpre retratar também o outro lado. Já no século ii manifestaram-se alguns oponentes. Depois, a maior parte da igreja Oriental deixou o livro completamente de lado durante séculos. No Ocidente ele também causou mal-estar (qi 18, 19). Mesmo os três Reformadores agiram como seus padrastos. O “Testamento de Setembro” de Lutero, do ano de 1522, que com razão é considerado presente de Deus ao povo alemão, infelizmente contém em seu prefácio um veredicto assustador acerca do Apocalipse, de que “nele Cristo não é nem ensinado nem reconhecido”. Edições posteriores moderaram a contundência. Contudo, a edição de 1689 ainda traz o Apocalipse fora da listagem e sem numeração de páginas, ou seja, como uma espécie de apêndice, não como livro bíblico de valor pleno. Zwínglio opina, de forma pejorativa, na Disputa de Berna, em 1528: “Do Apocalipse não aceito nenhum testemunho, porque não é nenhum livro bíblico”. Calvino simplesmente o ignorou em sua explanação da Bíblia. A atitude fria e reservada dura até os dias atuais.57
Onde estão as raízes das razões para tanto? Já no século ii o medo diante de entusiasmo real ou aparente58 exerceu um papel importante. A posição de Lutero também tem de ser vista em relação à sua luta contra os “entusiastas”, que se muniam assiduamente de versículos do Apocalipse. Mas o medo tira a objetividade. Parece que já em 1Ts 5.19-21 Paulo se dirige contra o curto-circuito do medo diante do “Espírito”: “Não apagueis o Espírito!”
Outra razão reside na aliança com o poder do Estado. Quando a igreja se tornou igreja estatal romana, passou a valer o ditado: “Canto o refrão de quem me dá o pão”. Com essa situação não combinava o “refrão” do Apocalipse, no qual o Império aparece como a “besta” e Roma como a “prostituta” montada nela. Não é de se admirar que o historiador eclesiástico e grande admirador da aliança com o Império, Eusébio, fale do livro com desprezo. A obra nunca deixará de causar espécie a um cristianismo farto e em harmonia com o mundo (cf. qi 19).
Bengel afirma a respeito de Ap 5.4: “O Apocalipse não foi escrito sem lágrimas, e tampouco é compreendido sem lágrimas”. Com essa afirmação, ele aborda uma questão de princípio em qualquer interpretação da Escritura, a saber, a questão da sintonia com a situação. Algumas partes da Bíblia permanecem cerradas por séculos, até que um novo momento histórico abra os olhos da igreja cristã. Mesmo aos olhos de um leitor individual, pode ainda não estar na vez de determinado livro agir. Quem não tiver relação com o sofrimento, dificilmente terá percepção para a profundidade e a força do Apocalipse, que na verdade é preparação para o sofrimento.
Finalmente, os leitores e exegetas se sentem incapazes diante da plenitude quase indecifrável de figuras do Apocalipse. Será que o proveito prático edificante, que apesar de tudo poderá ser obtido no final, vale a pena diante do esforço que consome a interpretação daquele que provavelmente é o mais difícil dos livros bíblicos? Por mais popular que o livro possa ter sido na primeira virada do século na província da Ásia, quando se compreendia de imediato as alusões veladas (cf. nota 43) e se ficava como que fascinado por elas, fato é que nós não vivemos na província da Ásia daquele tempo.
O exegeta realmente poderá ficar desanimado diante da tarefa. Por um lado, incide sobre sua cabeça uma multidão de detalhes que parecem caóticos, quando é preciso posicionar-se em relação a cada um deles. Por outro lado, porém, ele tem de manter em cada detalhe a visão das leis gerais da estrutura do todo. Não pode nem chegar perto demais nem permanecer longe demais. Um livro tão rico em conteúdo e profundo em seus compartimentos requer muito tempo, boa memória e concentração por longo tempo. Ainda assim, mesmo com essas premissas, as interpretações divergem. Qual delas é a certa? É amargo observar os pais da fé brigarem entre si.
A grosso modo, pode-se distinguir quatro formas de interpretação. Os comentários de cunho histórico (interpretações da história mundial, eclesiástica ou do reino de Deus) têm como seu primeiro representante o comentário ao Apocalipse, que nos foi preservado, de Vitorino de Petau (falecido 303).59 Um exemplo típico dos efeitos maléficos dessa forma de interpretação foi proporcionado pelo honroso J. A. Bengel (cf. qi 53). Ele considerou o Apocalipse um esboço profético da história mundial desde Cristo. Por isso, em sua “Explanação do Apocalipse de João”, ele deduz o seguinte: “É verdade que um conhecimento da história eclesiástica e mundial antiga e recente não constitui nem de longe o todo da interpretação, mas apesar disso é imprescindível para os que visam fornecer uma interpretação verdadeira da profecia”. De forma contínua, Bengel coloca ao lado de cada unidade do Apocalipse os dados da história universal que segundo a sua opinião combinavam com ela. Assim, os trechos da Bíblia falavam para ele de forma velada, p. ex., de Carlos Magno, dos valdenses, de Lutero ou Spener. Inúmeros exegetas seguiram o caminho de Bengel, embora parte deles fosse mais cautelosa, considerando como prenunciados apenas “pontos de virada principais” (“interpretação da história do reino”),60 p. ex., a Reforma, a Contra-reforma, o Iluminismo e a crítica à Bíblia ou também a i Guerra Mundial. Uma lista dessas interpretações dos séculos ii ao xx, para as quais grandes e pequenos expoentes contribuíram seriamente, encheria um livro grosso.61
Por mais cativante e popular que seja este método, temos de afastar-nos dele por princípio. É verdade que o Apocalipse concede, no sentido de 2Pe 1.19, “luz no caminho” pelos séculos afora. Ele o ilumina, mas ele não é o caminho. Ele não narra de forma cifrada a história mundial. Suas 49 visões não são de qualquer forma alusões aos eventos políticos, eclesiásticos, culturais ou espirituais dos próximos 2.000 anos.
A exposição com base na história decorrida e em curso obrigatoriamente causa confusão já pelo fato de que o conhecimento histórico dos intérpretes sempre permanece incompleto. Se Bengel tivesse tido o nosso conhecimento histórico atual, jamais teria fixado o começo do reino dos mil anos para o dia 18 de junho de 1837 (ele viveu cem anos antes). Toda a sua construção teria de ser deslocada! Cada novo evento maior poderia tornar necessária uma nova interpretação geral do Apocalipse.
Sobretudo é fato que as interpretações de cunho histórico dificilmente conseguem escapar da tentação de fazer cálculos, uma vez que se lhes impõe a busca por um ponto próprio de referência histórica. Por isso acontece com demasiada predileção que os números simbólicos são tomados como valores de cálculo, o que na realidade já constitui uma violência ao texto. O próprio Bengel publicou diversos prazos do fim dos tempos. Ao todo, nos séculos passados calculou-se e proclamou-se cerca de 200 dessas datas. O apocalipsismo judaico tardio está vivo (cf. qi 41)! Como será possível chegar a uma interpretação unânime com este modo de trabalho? Por isso acontecem brigas e decepções, e o conceito do Apocalipse sofre grande dano.
Provavelmente nenhuma das formas de interpretação subsequentes é a chave, mas sim uma das chaves, desde que não reclame para si o direito exclusivo.
A interpretação a partir da história contemporânea leva a sério o fato de que o Apocalipse, assim como, p. ex., também as cartas de Paulo, precisa ser entendido como genuíno escrito de ocasião. Não há mais necessidade de expor aqui a validade desse enfoque nem sua grande utilidade.
Não obstante, desde o Iluminismo62 a interpretação a partir da história contemporânea surgiu de uma forma que deve ser examinada. Segundo ela, João teria escrito apenas sobre cerca de dez anos no final do primeiro século. Em vista do iminente culto ao imperador, ele profetizou a ruína do Império Romano pela volta de Jesus Cristo. Seria este o sentido singelo do “em breve” de Ap 1.1 etc. Acontece que o Império Romano somente desapareceu séculos mais tarde, e não através da volta de Cristo. Analisado sobriamente, portanto, o Apocalipse seria um grande equívoco, mas um equívoco com proveito para a edificação. Conteria pérolas da devoção e poesia, continuando, por isso, a ser reverenciado e também digno dessa reverência.
Falta a essa visão todo o acesso ao profetismo bíblico. Jamais o profetismo bíblico deteve-se na prisão de uma única situação. Ele sempre viveu nas correlações gerais da soberania de Deus. João também não estava isolado de qualquer outra situação na sua realidade. O motivo pelo qual não foi capaz de falar de maneira tão concreta àquelas igrejas na província da Ásia não era porque desconsiderou todas as demais igrejas e épocas, mas o inverso: a partir do contexto geral da igreja de Jesus Cristo entre ascensão e volta de Cristo, ele traz luz também àquele período e àquela hora.
Exemplificando: a Roma daquele tempo claramente tinha as características da “Babilônia”. Isso, porém, não significa que “Babilônia”, este antiqüíssimo conceito da proclamação bíblica,63 se resume a Roma, mas tão-somente indica que Roma tinha traços anticristãos e escatológicos. Por isso, “Babilônia” também não submergiu com Roma e por isso o Apocalipse continua pregando sem prejuízos acerca da “Babilônia”, até hoje.
Os sacerdotes imperiais daquele tempo tinham traços nítidos de “falsos profetas”. Mais uma vez, isso não significa que João tinha em vista somente estes sacerdotes e que apenas eles fossem o “falso profeta”. Significa unicamente que eles também o eram. Desde Balaão, o “falso profeta” igualmente faz parte dos conceitos de proclamação no povo de Deus.
João certamente profetizou também, mas não exclusivamente sobre aquela uma década, mas sobre duas décadas, séculos ou milênios – ele ignorava o espaço de tempo tanto quanto nós (cf. qi 44). Afinal, ele profetizou para o tempo da igreja, que desde a Páscoa se encontra no fim desdobrado (cf. qi 50). Para essa igreja vale, durante todo o tempo de sua existência, o “em breve” profético. O “em breve” profético a acompanha por todo o trajeto, estabelece-se de momento a momento para cumprimentos prévios, e novamente sai de cena até que suceda o último cumprimento.
A interpretação exclusivamente histórico-contemporânea é passível do mesmo veredicto que as interpretações de cunho histórico. Da forma arbitrária com que lida com Ap 17.9-11 pode-se depreender como seu método é alheio ao objeto. Aqui a série de imperadores romanos precisa ser enquadrada a qualquer custo! Por que algo tão fácil não deveria ser possível, se João realmente tivesse tido essa intenção? Porém não foi essa a idéia que ele quis expressar!
A explicação escatológica ensina que, já a partir do cap. 2, ou pelo menos do cap. 4 em diante, o livro se refere ao tempo após o arrebatamento da igreja (eventualmente incluindo-se alguns dos anos anteriores a ele). Até aquela hora, portanto, abre-se uma imensa lacuna, sobre a qual o Apocalipse silencia. A rigor, o livro não se destina às gerações que se encontram nesta lacuna, exceto como ensinamento acerca de questões sobre o plano de salvação. Essa era a forma de interpretação do católico F. Ribera, no ano de 1591. Seu objetivo era tirar o chão debaixo dos pés dos protestantes, que desde Lutero e de conformidade com sua doutrina sobre a igreja, teimosamente relacionavam a “Babilônia” no cap. 13 ao papa (“O papa é o verdadeiro anticristo”, Artigos de Esmalcalde, 4). Por isso, ele afirmou que o livro estava descrevendo apenas os últimos três anos e meio antes da volta do Senhor. Diversas variantes dessas idéias penetraram também em círculos pietistas.64 Deve-se dar as boas-vindas ao afastamento que essa interpretação trouxe da leitura a partir da história mundial e à seriedade com que trata a escatologia como tal. Infelizmente, porém, a escatologia não é compreendida segundo os termos do nt. De acordo com o Novo Testamento, encontramo-nos no fim desde Sexta-Feira de Paixão, Páscoa e Pentecostes (qi 48). Na medida em que essa interpretação “escatológica” ignora o caráter escatológico do tempo atual, ela retira do livro sua atualidade para a igreja de hoje e o sela, contra a vontade dele próprio (Ap 22.10), para muitas gerações.
A interpretação de cunho religioso geral pode ser combinada com todas as demais interpretações, mas também pode aparecer de maneira bem extremada. Neste caso, o Apocalipse não contém nem profecias autênticas para o tempo de João, nem para a época posterior, nem para o fim do fim. O aspecto profético é válido apenas como um invólucro, a ser retirado em torno do verdadeiro cerne, a saber, a instrução religiosa atemporal a respeito de fidelidade, arrependimento, esperança, oração, coragem para sofrer etc. O Apocalipse naturalmente combina este incentivo genérico para a devoção com muitos documentos religiosos daquela época. Por isso, estes exegetas gostam de apontar paralelos de mitologias babilônicas, tradições persas, seitas mandeias, bem como da astrologia helenista. Estudos comparativos da história das religiões são úteis como tais, quando não dissolvem justamente aquilo sem o qual sequer existiria o Apocalipse do Novo Testamento, a saber, sua característica cristã.65

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NOTAS

qi questões introdutórias
56 Nos pormenores, cf. Brütsch, pág. 119ss.
nt Novo Testamento
57 P. ex., R. Bultmann, Theologie des Neuen Testamentes, 5ª ed. Tübingen 1965, pág. 518: “Será necessário designar o cristianismo do Apocalipse como um judaísmo fracamente cristianizado.”
58 Os assim chamados “álogos” (cf. qi 18) combatiam sobretudo o movimento dos montanistas na Ásia Menor, que visava renovar a linha profética cristã primitiva diante da igreja oficial e institucional que vinha se estabelecendo. O montanismo naturalmente nutria-se do Apocalipse de João e do seu mundo conceitual, além de apreciar o êxtase e o falar em línguas, vivendo numa ardente expectativa do fim próximo.
43 Se o autor se tornasse conhecido, seguramente teria que sofrer conseqüências terríveis. Talvez seja de fato essa a causa dessa predileção pela linguagem cifrada e simbólica (qi 29). Desse modo, as autoridades não tinham nenhuma possibilidade de tomar providências contra os que se ocupavam com essa literatura.
59 Quanto a representantes mais recentes, cf. a “Introdução à Literatura”.
p. ex. por exemplo
60 Fundador dessa linha é K. A. Auberlen (1857), ao lado dele J. Ebrard (1853). Quanto a defensores mais novos, cf. “Introdução na Literatura”.
61 Cf. Lückes Versuch einer vollständigen Einleitung in die Offenbarung Johannes (1832) com bem mais de 1.000 páginas (referido em J. P. Lange, Die Offenbarung des Johannes, 1871).
62 Um jesuíta espanhol em Antuérpia, Luís de Alcazar (falecido 1613), começou este trabalho, descobrindo referências históricas sobre o domínio dos romanos. Somente F. Bleek (1820) marcou época; depois H. C. A. Ewald (1828) e muitos outros. Quanto a representantes mais recentes, cf. a “Introdução na Literatura”.
63 Outros conceitos de proclamação utilizados no Apocalipse, mas não apenas ali: Balaão (Ap 2.14), Jezabel (Ap 2.20), Sodoma e Egito (Ap 11.8), Eufrates (Ap 9.14; 16.12), Sião (Ap 14.1).
64 Em 1844, J. C. K. von Hofmann considerou que o Apocalipse excluía todo o tempo da igreja gentílico-cristã, da destruição de Jerusalém até a conversão futura de Israel. O livro abordaria somente o tempo posterior a este período e apenas lsrael (após o arrebatamento da igreja como corpo de Cristo). Quanto a representantes mais recentes, cf. a Introdução na Literatura”.
65 H. Gunkel (1895), líder da escola da história das religiões, foi pioneiro do “método da história da tradição”, ao qual W. Bousset aderiu em grande medida.



FONTE: Pohl, A. (2001; 2008). Comentário Esperança, Apocalipse de João; Comentário Esperança, Apocalipse (48). Editora Evangélica Esperança; Curitiba.
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